A Canção Errante de Natal
por Joel Puga
Com o som de flautas, a canção abriu os olhos. Estava num parque,
rodeada de crianças a brincar e pinheiros cobertos com luzes multicoloridas.
Conforme as flautas construíam um crescendo, ela elevou-se acima da
copa das árvores. Durante uns segundos de silêncio, ali ficou, parada,
observando a cidade. Depois, iniciou-se uma batida ritmada, e a canção voou
avenida abaixo. Havia pessoas por todo o lado, admirando as luzes nos arcos e
nas fachadas dos edifícios, e, sempre que se cruzavam, diziam “Feliz Natal”.
Uma voz começou a cantar, acompanhando a batida, e a canção entrou num
apartamento. Passou pelo pinheirinho, ornamentado com bolas, faixas e estrelas,
e pelo pai, que preparava e decorava a mesa, até que chegou à cozinha, onde se
sentia um cheiro a mel e a canela, e a mãe, ajudada por um rapaz e uma
rapariga, preparava varias iguarias.
Mal saiu do apartamento, a
canção sentiu um forte impulso de ir para norte. Acima das nuvens, anjos
contavam o pré-refrão, enquanto ela voava à velocidade do som.
Chegou ao pólo-norte, avistou a enorme fábrica do Pai Natal, e o refrão
começou. Num gigantesco hangar, uma legião de diminutos elfos carregava com
prendas centenas de trenós e alimentava as respectivas renas. Não muito longe,
num anfiteatro, o Pai Natal original instruía os seus inúmeros clones e
atribuía a cada um uma pequena parte da Terra. A canção até passou pela fenda
que ligava o nosso mundo ao da imaginação, por onde, durante todo o ano,
passavam os robôs gigantes, os dinossauros, os póneis cor-de-rosa e tudo o mais
que os elfos usavam como modelo para os brinquedos que fabricavam.
O refrão terminou, e a voz começou a cantar um novo verso. A canção
voltou ao sul, à cidade, onde a noite já havia caído. Pessoas sozinhas, casais,
famílias inteiras andavam nas ruas, dirigindo-se às casas de familiares ou
amigos. A canção viu-os ser recebidos com abraços e beijos, aos quais eles
retribuíam com garrafas de vinho e travessas cheias de rabanadas, filhoses e
sonhos.
No início de um novo pré-refrão, a canção entrou numa das casas. Viu
adultos a falarem à volta da mesa, enquanto crianças brincavam debaixo dela.
Alguém chamou da cozinha e alguns dos adultos deixaram a sala, voltando pouco
depois com travessas cheias de bacalhau, polvo e peru. Todos se sentaram à
mesa. Uma das mães acendeu as velas. E o refrão começou.
Durante horas, ficaram ali sentados, a comer, a conversar, a cantar
músicas de Natal. No fim da refeição, ficaram em silêncio a ver um filme
familiar. Até que chegou a hora das crianças irem para a cama. Os visitantes partiram,
voltando para os respectivos lares, enquanto a mãe da casa foi deitar os
filhos. Estes, a princípio, não conseguiam dormir, entusiasmados com as prendas
que os esperariam de manhã no sapatinho, mas o cansaço acabou por os vencer. O
refrão deu lugar ao solo. Durante a noite, todos os instrumentos conhecidos do
homem tiveram o seu momento de ribalta.
A canção desceu à sala, chegando mesmo a tempo de ver um dos clones do
Pai Natal teletransportar-se do telhado. Do saco, tirou duas prendas, pousando
uma ao lado de cada um dos sapatinhos em cima da lareira. Depois, voltou a
desaparecer.
Ao raiar do dia, as crianças acordaram, dando início ao refrão,
correram escadas abaixo e abriram as prendas. Durante toda a manhã, brincaram
com os novos brinquedos, enquanto o refrão se repetia uma e outra vez. Depois,
chegou a hora do almoço. Com um talher numa mão e o novo brinquedo na outra,
comeram as sobras da noite anterior, enquanto os pais se deliciavam com um prato
de roupa velha.
O almoço prolongou-se até meio da tarde, quando os pais começaram a
limpar a mesa. Foi então que todos se
aperceberam de que o Natal estava a chegar ao fim.
A última repetição do refrão deu lugar ao som de flautas. Exausta, a
canção deixou a casa e flutuou de volta ao parque. Deitou-se debaixo dos
pinheiros e, aos poucos, fechou os olhos, ansiosa por acordar de novo no
próximo Natal.
FIM
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